Hermínio Naddeo

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Meus escritos

Terminei de escrever meu Livro de Cabeceira do Candidato, lançamento da Editora Advento, e comecei outro, em fase de pesquisa e primeiras anotações.
Mas, pra você ler agora e conhecer meu texto, quatro historinhas que escrevi durante um Laboratório de Redação no MAM Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 2009, inscrevi um conto no concurso Talentos da Maturidade. Não deu prêmio, mas algumas boas opiniões a respeito.
Dia 24 de maio de 2010, foi lançado o livro Os Meninos da Folha da Tarde, onde o pessoal da Editoria de Esportes conta sua história em plena ditadura, dando voltas na censura e conseguindo lutar para moralizar o futebol em São Paulo. E conseguimos, derrubando os presidentes do Corinthians, do Palmeiras, do Santos e da Federação Paulista de Futebol, além de provocar a substituição do todo o Departamento de Árbitros da entidade. Eu sou um daqueles "Meninos".

Você pode ler as cinco histórias aí embaixo, rolando a página. Ou, se preferir, na forma de um livro "passa página", clique neste link: 

http://www.youblisher.com/p/386169-CINCO-CONTOS-DE-REIS/

BÚZIOS
 
Jogando búzios. Procurando um caminho, nos caminhos já percorridos. Este caramujo da esquerda mostra um corte às vésperas de um casamento. Ou um corte perto de um nada. Ou perto de um tudo que não chegou a haver. Este outro já caiu assim três vezes. Não mostra nada. Quer dizer, não há caminhos já percorridos neste caminho que você quer procura. Ou que não procura. Afinal, onde você quer chegar? Ou está querendo dizer chega? Chega, não chega, que Iemanjá fez seu corpo fechado, não há despacho que pegue, pode fazer o seu caminho. Siga os caminhos já percorridos e você acha os novos caminhos. Para onde? Ninguém sabe. Isso os búzios não dizem. É claro que eles falam, não está vendo? Este aqui, o menorzinho, está contando o que você já sabe. Como, você não sabia? Claro que sabia, os búzios disseram, você estava aí e nem viu. Cuidado ao dirigir porque os caminhos são cheios de curvas. Você olha pra trás, e não vê mas elas estão lá. Claro que estão, você passou, ficaram as marcas. As marcas das curvas dos caminhos. Elas ficaram, não, não estão em você. Só estão. Percorridos os caminhos, procurando um caminho, percorrendo. Onde vai dar esse caminho? Olha, o búzio mostra. Ele leva até onde você quer chegar, onde seja, onde for. Se você pegar o caminho da direita também chega. No mesmo lugar que você quer chegar. Ou pode ser pela esquerda. Lá adiante tem um atalho, se você quiser pegar. Pode ser que o atalho chegue antes. Mas é possível também chegar depois. Ninguém sabe como o atalho é. Esse caramujo de ponta não falha. Ele disse que o corpo está fechado, é porque está. Pode seguir o caminho percorrido, procurando o seu caminho. Tem alguém no seu caminho. Não, isso o búzio não fala. Pode ser que o alguém ficou nas curvas. Claro, existe a possibilidade. No atalho ou à direita. Pode ser à esquerda. Já passou ou vai passar. Procurando o caminho, nos caminhos já percorridos, é só fazer o seu caminho. Não há caminhos que levem lá. Todos chegam. Todos vão. Ou já foram. Ou já chegaram a esse lugar a que você quer ir. Você não quer ir? Então não vá. Ficando também se pode chegar. Os faróis do fim do mundo estão apagados. Não dá pra ver se os faróis estão lá. Mas é claro que estão lá. Naquela direção que o caramujo aponta. Não está vendo? É para a esquerda. Ou para a direita. Você pode escolher: prefere ir para a frente ou para trás? É, lá atrás também tem coisa boa. Os búzios garantem que você vai chegar.

31  DE OUTUBRO

 Da minha janela dá para ver o cais. Os navios estão lá, encostados desde ontem, todo enfeitados. A multidão se aglomera para as despedidas e o ruído chega misturado com a música tocando alto pelo sistema de som instalado em cada esquina e praça da cidade.
 Minhas malas estão arrumadas há semanas. Nesses últimos tempos, só tenho feito apagar os vestígios de minha estadia por aqui. Acho que fiz tudo direito, eu mesmo quase não percebo minha presença neste quarto onde vivi a maior parte de minha vida. Minha mulher e meus filhos estão lá no cais, vivendo o feriado que se repete a cada ano. É uma festa bonita. Acho que só é triste para quem está indo, porque a gente não sabe para onde vai. Participei desta festa tantas vezes e só agora entendo porque tinha gente que subia para o navio com lágrimas correndo pelo nariz.
 A sensação é realmente esquisita. Saber que tem que ir. Mesmo 20 anos depois do Governo dar a ordem, a impressão é de que ninguém se acostumou. É duro passar 55 anos convivendo com esse mundo, apegando-se às coisas, criando amor em tudo e, de repente, acabou.
 Os jovens sentem menos porque nasceram com a ordem instalada. Foram preparados. É normal para eles acontecer o feriado, dançar e beber na praça do cais e dizer adeus para seus velhos. Mas, para nós, os velhos, é difícil, muito difícil.
 Eles disseram que lá é muito melhor. Que é um verdadeiro paraiso onde não falta nada nunca e a solidão não existe. As assistentes sociais fazem programas permanentes, eles disseram, que eu não vou ter tempo de sentir saudades. E que daqui a três anos, quando minha mulher completar 55, ela leva as notícias para mim. Notícias, eles garantem, que eu não vou querer saber.
 Passo pelo portão e nem ele mais é o mesmo. Não posso evitar esse nó na garganta, porque começo a compreender que já não faço parte daqui. Sou como o velho portão de madeira que eu mesmo troquei faz tão pouco tempo por este que se abre célere para minha passagem. Sigo para o depósito das coisas que não têm mais utilidade.
 As pessoas com quem encontro descendo a rua mal têm tempo de olhar para mim. Elas sabem que estou indo, é gente com quem convivi todos esses últimos anos. Mas elas passam indiferentes. A euforia com a festa está no rosto de cada uma, nas roupas com cheiro de novo, no olhar ansioso com que procuram as bandeiras tremulando suas cores nos mastros dos navios.
 Entro na praça e as pessoas me envolvem. É engraçado essa multidão de rostos sorrindo juventude e simpatia, estendendo a caneca de bebida na absurda comemoração de minha própria partida. O cais está repleto, as pessoas se acotovelam no ritmo da música.
 Minha mulher e meus filhos estão aí, junto com o povo, nessa alegria louca, perdidos de todos e de tudo. Eu vou. E não importa.
 Subo os degraus como tanta gente tem subido nesses últimos 20 anos, desde a ordem. Volto a cabeça procurando um rosto amigo, um olhar que seja demonstrando sentimento. Mas as pessoas lá embaixo estão muito ocupadas consigo mesmas. Os velhos, os inúteis velhos de 55 anos não deixam saudades. Vão apenas, porque é chegado o dia de ir.
 Na amurada, olho o povo se afastando, ficando pequeno na distância. O som chega abafado, as luzes vão sumindo pouco a pouco na curvatura do horizonte. O navio apita uma, duas vezes.
 

CRIANÇAGEM

 A irmã tinha começado a usar sutiã e ele é que estava com fogo de contar para o amigo e contou pondo força em cada palavra. O outro apertava o calço para segurar a asa do aeromodelo enquanto a cola secava. Distraído estava, distraído ficou. A conversa parou por aí até os próximos dias.
 Motorzinho aparafusado no caibro pregado no chão, rodando, rodando, saiu num solavanco:
 - Ontem eu vi os peitinhos da Lúcia. Que nem dois limõezinhos deste tamanhinho.
 - E como é que você viu?
 - Ela me mostrou, ora.
 Luiz, onze anos, Lúcia, treze,  já pegando jeito de moça que o irmão não atinava com tanta transformação naquele quarto que era dos dois. A mãe deu o primeiro absorvente com o mesmo isto é pra você do dia do sutiã. Comentava tudo com o irmão.  Ia parar no ouvido de Rodrigo, doze, único amigo que os pais deixavam ter.
 Cheiro de tinta do aeromodelo entrando pelo nariz, Rodrigo moleque safado ficou bobo que Luiz viu a coisa da Lúcia porque aquilo ele nunca tinha visto ainda.
 - Escuro que nem a noite, macio como o veludo.
 - E você pôs a mão? Ela deixou?
 - Que é que tem? Ora, foi só pra sentir como era.
 Agora que estavam em férias ninguém precisava se incomodar com horário, uniforme, lição. Os pais saíam pela manhã, às vezes vinham para o almoço se sobrava um tempinho que nunca sobrava. Lúcia em recuperação com a montanha de livros da escola para estudar, pai chegava, tomava o ponto, se errava apanhava de cinto na frente do amigo do Luiz e ia dormir sem janta, assim você aprende.
 Rodrigo mostrando para Luiz o relógio novo ganho de Natal, Lúcia no canto da sala enfiada nos livros, a consulta veio de menino que não sabe nada para o moleque sabido criado mais solto na rua, como é que ia fazer para botar na irmã. Rodrigo se encheu de sabedoria e ensinou falando baixinho e olhando para ver se a menina prestava atenção:
 - Vocês dormem no mesmo quarto, ué. De noite você vai pra cama dela, baixa a calcinha e deita em cima.
 - E se ela acordar?
 - Sei lá. Finge que toma um susto, faz de conta que é sonâmbulo, que tá acordando na hora.
 Pai do Luiz não deixou ir junto para Cabo Frio, Rodrigo foi para as férias com a família, só quinze dias, não adianta insistir, fala obrigado e diz que você vai de outra vez, mas agora não podia ser, a irmã em recuperação ficar sozinha em casa.
 Luiz precisava estar lá, o avião fez o maior sucesso na praia, só vendo a turma toda com inveja, meu pai falou que hora dessas compra um de controlar pelo rádio, você me ajuda?
 - Deu certo, Rodrigo.
 - Deu certo o quê?
 - Aquele negócio com minha irmã. Eu trepei nela. Fiz como você falou, ela tava dormindo, eu fui pra cama dela, baixei a calcinha dela e foi. Eu acho que ela acordou mas fingiu que tava dormindo porque ela abriu as pernas um pouquinho e quando voltei pra minha cama percebi ela vestindo a calcinha de novo.
 Dava pra ver o coração batendo no peito magro e nu, a mão segurando por cima do calção, boca entreaberta e olhão arregalado, a bomba para explodir dentro da cabeça. Ainda mais escuro que nem a noite e macio como o veludo. Não pensou duas vezes para fazer o pedido, de amigo para amigo:
 - Fala com ela pra dar pra mim também.
 - Não, eu nem sei se ela sabe o que aconteceu. E você não vai comer a minha irmã, não!
 Negado o pedido, chantagem seja feita:
 - Se você não falar com ela eu vou contar pra todo mundo.
 Aeromodelo do jeito que estava ficou, Lúcia enfiada nos livros e apanhando seis horas da tarde, os dois só conversando em baixa tensão, já falou com ela?, pois é, o aeromodelo, já vou indo, não obrigado, minha mãe está esperando pra janta. Até que Luiz disse que Lúcia queria ver o de Rodrigo. Só ver. Moleque que se achava safado ficou com vergonha, mostrou quase uma semana depois, lá no quintal perto da porta da cozinha, baixando o calção um pouquinho, ela riu lá de cima da janela do quarto, depois desceu e enfiou a cara no livro no canto da sala.
 Um olhando para o outro com vergonha, Rodrigo chegando pra perto, perna tremendo, Lúcia fingindo que estava lendo, Rodrigo abraçou por trás, foi logo pondo a mão, ela não ligou, ligou sim quando a mãozinha entrou pelo elástico da calcinha ela foi mais para a frente na cadeira, coração batendo mais forte dentro do limãozinho galego, o esquerdo.
 Mal se viam, os meninos. Luiz sempre trancado no quarto brincando com jogo de armar, Rodrigo e Lúcia na sala brincando com jogo de amar, nem sabiam que chamava assim. Lúcia em pé ao lado da janela, pernas abertas, vigiando se vem alguém, Rodrigo sentado na cadeira ao lado, mão esquerda mexendo dentro da calcinha, mão direita mexendo dentro do calção, ela reclamando se ele parava o movimento.
 - Mexe, tá gostoso, mexe.
 Sentados no sofá, os pais sairam agora, não precisa se preocupar, mão de Rodrigo perdida embaixo da saia, Lúcia sem calcinha, Luiz brincando no quarto, Lúcia mordendo pedaço de queijo parmesão, Rodrigo aproximando a boca da boca, o primeiro beijo. Recusado:
 - Não, deixa de ser sem vergonha. Isso não!
 Ele empurrando o pano da calcinha com o peruzinho, ela um degrau mais alto na escada, ele querendo subir, subir mas com medo danado de chegar. Achava que era homem, moleque safado, dizia que era perigoso e se ela tivesse nenê? Era homem nada, que a coisinha branca que ele via ela sujeira, sebinho de tanto por a mão.
 Treze anos e onde foi que ela aprendeu?
 - Por que você não vai na farmácia e compra aquele negócio que põe aí?
 - Eles não vendem para menino.
 Treze anos e onde foi que ela inventou?
 - E se você botar aí o saquinho de plastico que vem na gelatina Royal? É fininho, será que não dá?
 Não dava. Peruzinho ficou dançando, plastico sobrando e o cheiro de gelatina por mais que lavasse não saía. E o medo de escorregar e ficar lá dentro saquinho e tudo, Deus me livre, e se não saísse mais? Riram que tava engraçado mas depois ela ficou com raiva dele e mandou ele embora, nem quis que mexesse mais.
 Rodrigo descendo a escada, nossa, lá embaixo Lúcia e a mãe, a mãe dele com cara de brava, os degraus subindo contra seus pés, fala na frente dele, Lúcia, fala:
 - É, sim, ele tava olhando pelo buraco da fechadura, eu tava no chuveiro, escutei barulho na porta e vi ele correndo quando eu abri.
 A mãe chamou pra outra sala, perguntou se era verdade, ele jurou pela tia que tinha sido freira que não tinha olhado, mãe falando pra mãe que quando ele jura pela tia freira pode acreditar que é verdade. Lúcia espantada foi apanhando pra casa passando vergonha na rua.
 De tarde Rodrigo foi lá, primeiro ficou rondando com medo da mãe dela, depois sentou na calçada em frente, Luiz na janela fez sinal para entrar. Lúcia abriu a porta com cara de tudo bem, nem chamaram o irmão, nem tocaram no assunto, foram para o sofá e ela passou a tardinha vigiando ao lado da janela.
 Estava sempre com a mão cheirando Lúcia. Lúcia já estava dentro do nariz, lavava a mão com sabonete e nem assim o cheiro saía. E toda hora a vontade de ficar lá, os dedos molhados, Luiz tinha razão, era macio como o veludo. E era molinho por dentro, igual enfiar os dedos no potinho de gelatina, o saquinho de gelatina, a caixa do supermercado ficou olhando pra ele olhando para as dezenas de caixinhas de Jontex penduradas, quer alguma coisa?, ele sem coragem de pedir, saiu.
 Ela deitou de bruços, ficou deitada esperando, saia levantada nas costas, ele olhando, era grande, uma grande lua branca, quase desistiu, deitou por cima procurando, achando caminho com a mão ajudando, perguntando, ela virando as páginas da revistinha:
 - É aí?
 - Mais pra baixo.
 - E agora?
 - Mais pra cima um pouquinho.
 - Agora?
 - Humm, humm.
 Virando página da revistinha, lendo a historia, foi a mesma coisa de tarde, mesmo sofá da sala, mesmas perguntas, humm, humm, pronto. Ele estava indo embora ela perguntou:
 - Sabe por que eu fiz isso?
 - Não.
 - Pra me vingar de duas pessoas. Meu pai e minha mãe.
 Não falou mais com ele. Começaram as aulas, Rodrigo mudou de escola, via Luiz de vez em quando, nunca mais fizeram aeromodelo, brigaram um dia de rasgar camisa e arranhão nas costas. Rodrigo fez outro amigo, um dia contou que era homem já, que nada, o outro disse, sou sim, não é não, você não tem tamanho, levou ele pra empregada provar quem tinha razão. Ela estava passando roupa, em pé, o amigo levantou a saia dela, baixou a calcinha, ele encostou, ficou esfregando até dizer pronto, a empregada riu, não era homem mesmo, ainda não.
 Rindo sozinho de contente, correu pela rua, nem dormiu direito, esperou em frente da casa, cedinho. O pai saiu, a mãe também, Luiz já estava na escola. Bateu, Lúcia atendeu da janela da sala, ele disse que não era homem ainda não, abre a porta, que podiam sem perigo, não precisava nem de saquinho de gelatina.
 Ela bateu a janela, chamou Rodrigo de cavalo. Estava vingada.

AQUÁRIO

 Apagou todos os blocos de textos pela décima vez e ficou procurando na tela em branco as palavras que queria ver escritas. Inspirou fundo, apoiou os pulsos e recomeçou a digitar acompanhando a velocidade do pensamento.
 Ela entrou, tirou a camisola e jogou-se na cama. Não disse uma palavra. Aquele olhar queria dizer tudo.
 A mulher assustou-se, papel arrancado da impressora de uma só vez, bolinha branca amassada em direção ao cesto de lixo. Fechou o livro batendo as páginas e olhou para ele com força.
 Foi o primeiro a baixar os olhos, disse desculpe enquanto colocava mais folhas na bandeja da impressora. A mão dela foi chegando, os dedos entraram pelos cabelos, correndo suaves, sugerindo um reencontro. Trégua. Amarrado à mesa de torturas, gritos ecoando surdos na mordaça, aflição impotente contra as garras lixas raspando seu couro cabeludo. Sorriu de volta.
 - Quer? Ela perguntou ao lado da cama, polegar pra lá pra cá no elástico da calcinha.
 Sorriu satisfeito. Revisou o texto na tela e mandou salvar. Espreguiçou, mãos contra os rins, endireitando a coluna. Foi até a janela e se imaginou engraçado visto de fora, nariz e boca amarrotados contra o vidro. Lá embaixo as pessoas desfilavam seus dez centímetros pelas calçadas, desviavam dos carrinhos de corda que atravessavam a rua barulhentos.
 Sentiu o braço enlaçando a cintura. Quis fugir pelo vidro do aquário, o tentáculo impedia movimentos. Outro braço deslizava grudento sobre o peito, ventosas buscando apoio na pele coberta de pelos, nos mamilos, comprimindo o tórax. Sufocava. Os pulmões abriram-se como um fole, as unhas buscaram livrar o corpo cravando-se nos braços. Não havia forças a não ser para um suspiro profundo.
 Dedos correndo leves em toques delicados. Linha sucedendo linha, os dois olhavam o teto no silêncio bom, a fumaça do cigarro sumia antes de alcançar o teto, o escuro começava a entrar pela janela, já mais pesado.
 - Tenho que ir - disse ela, voltando à realidade.
 - É cedo - respondi, ainda no corpo a incompetência de todos os sentidos.
 Ela veio com o café, colocou junto do cinzeiro que também trouxe. Sentou-se, folheou o livro para achar a página. Sabia que ele estava olhando. Sorriu para dentro. Livrou-se do peso do olhar na página 57, virou para a seguinte e mergulhou na piscina junto com a personagem.
 A cabeça era um liquidificador, misturando tudo. Ele e ela, o amor proibido algumas tardes por mês. Ela, ali, afundada no livro e na poltrona. Ele aqui, querendo não estar, brigando com o ttttttt disparando na tela, frase perdida pontuada por um cursor piscando. 
 - Quando a gente se vê de novo?
 - Ele deve viajar amanhã. Eu telefono.
 Soco na mesa, café virou, susto da mulher, folhas caindo, mãos cobrindo o rosto, socorro chegando no alívio de lágrimas, boca babando escancarada para gemido passar. Garganta contraída ficando mole engolindo resto de aflição, respira, expira, respira, expira, isso, calma, está tudo bem, tudo bem. Tu-do.
 Era bom, mesmo tentáculos com ventosas, mesmo garras lixas. Era bom, mesmo carne esponjosa de lábios cobrindo rosto com beijos gosmentos. Carinhos que não queria, carícias queimando feito corte com gilete, corpo extenuando-se contra corpo para a paz passageira de um orgasmo. Pior que era bom.
 - Não podemos continuar assim. Você tem que decidir, de uma forma ou de outra.
 - Nós tínhamos combinado não apressar nada. Ir devagar, as coisas assumindo a direção.
 Fez um asterisco ao lado da frase. Palavras construindo imagens, preto desenhando cores em cima do branco. Não se irritou nem com o cigarro que acendeu pelo lado do filtro. Tirou outro da carteira, riu do aviso do Ministério da Saúde e recheou com a fumaça o vazio por dentro.
 Percebeu. Estava feliz com a ausência da mulher, senhor dos espaços da casa. Podia estender a bolha que o envolvia sem precisar dividir nem encolher para evitar esbarrões. Dono.
 Correu para o quarto ao ouvir a chave. Cobriu-se e fez que dormia. Ela chegou e entrou no faz de conta. Brincou de dormir virada pra lá sem se mexer. Provocou encostando um pouquinho a nádega nua morna.
 Foi para cima tomando posse, abrindo pernas apertando seios.  Dono.
 - Eu gosto assim. Às vezes fico pensando se um homem me tomasse à força, um estupro, sei lá.
 - Pare de dizer besteira. Eu fiz sem violência, um cara na rua iria machucar você.
 - E se eu gostasse?
 Bebeu a água de um gole, querendo afogar a lembrança. A boca da mulher sangrava, ficou excitado. Ela não queria, mas ele quis, quis. Mais tarde ela disse tinha sido bom, uma das melhores vezes. Ele ficou com vergonha. Agora a sensação era parecida, queria explicar o sentimento e dissecar a explicação para entendê-la de fora pra dentro, de dentro pra fora.
 Acabou de trocar o toner da impressora, arrotou o sanduíche o o guaraná de boca fechada. A mulher era uma censura, mesmo sem dizer nada. Não gostava que ela entrasse no banheiro depois dele. Levantava cedo só para escovar os dentes e lavar o rosto antes que ela acordasse, certo da recriminação que nunca deixara acontecer.
 - Já falou com ele? - perguntei, água caindo na cabeça.
 - Nem vou falar - respondeu frente a frente, encarando. - Na hora certa eu saio e pronto. Deixo um bilhete, uma carta, explico tudo. Eu não gosto de cenas. Ele vai saber com tudo já resolvido.
 - Seria mais correto você falar agora.
 - Prefiro do meu jeito. Quando a gente voltar ele já terá se acostumado com a idéia. É melhor. Dá outra chuveirada que você está com sabonete no ouvido. No outro.
 O diálogo tinha cessado há muito. Ou não chegara a acontecer. Monólogos de parte a parte. Dela, procurando a chave para entrar sem medo, para mostrar-se nuamente. Dele, não querendo ser visto, portas trancadas por dentro, egoísta de um mundo onde é rei e aboliu abraços viscosos. Não há garras lixas como essas que ela teima, oferece pensando que faz carinho.
 Era a última vez. Entregou-se ao texto com delicadeza, as linhas rolando macias tela acima. Acariciou cada tecla. As palavras na tela dançavam a música que ouvia. Uma valsa.
 Ele venceu. Sabíamos disso o tempo todo. Esses quinze dias me encheram da certeza da espera inútil. Eu nunca soube esperar. Felicidades. Desculpe o lugar comum.
 Sentiu os tentáculos se aproximando asfixiantes e finalmente conseguiu. Atravessou o vidro do aquário e mergulhou majestade para junto de seu povo de dez centímetros. Um círculo silencioso e solene se fez à sua chegada.